terça-feira, fevereiro 11, 2014

Os portugueses descobriram a Austrália ?

Foi vendido em Nova Iorque um livro de cânticos religiosos português que se presume ser datado de ca.1580-1620. O livro contém uma particularidade extraordinária: uma iluminura que representa o que parece ser um canguru. Este é o primeiro esboço conhecido de um marsupial desenhado por ocidentais.

Fonte da imagem.

A noticia coloca a possibilidade de a iluminura provar que os portugueses chegaram à Austrália antes dos holandeses, o que, finalmente, serviria para demonstrar que eles foram os descobridores europeus da Austrália.

Infelizmente, a imagem do marsupial não prova que os portugueses tenham chegado à Austrália antes dos holandeses; na verdade, não prova tão pouco que os portugueses chegaram à Austrália.

As razões que fundamentam a ausência de prova são duas:
(1) a datação provável do livro não é inequivocamente anterior a 1606, ano da chegada dos holandeses à costa australiana, e;
(2) o animal representado pode ser um wallaby, uma especie marsupial mais pequena que os cangurus que, para além da Austrália, tem também habitat natural na Nova Guiné, a maior das ilhas do arquipélago indonésio, situada a norte da Austrália. Ora, os portugueses chegaram (e deram esse nome) à Nova Guiné em 1526, pelo que é admissível que a figura corresponda a um wallaby avistado na Nova Guiné, e não a um canguru australiano.



O Mapa de Godinho de Erédia.

A comprovação documental de que a Austrália foi descoberta pelos portugueses é uma questão que se arrasta desde meados do século 19: "Tudo começou em 1861 quando Richard Henry Major, conservador do Museu Britânico, e já anteriormente interessado pelas temáticas do descobrimento da Austrália, ali descobriu a cópia de um mapa português onde consta um largo continente localizado a sul da Indonésia com a seguinte legenda "Nuca Antara foi descoberta em 1601 pela mão de Godinho de Eredia, por mandado do vice-rei Aires de Saldanha."" (*)

Java e Austrália, 1601
Fonte da imagem.

Ainda assim não há consenso sobre o valor probatório daquela inscrição, ou de que o contorno desenhado de Nuca Antara corresponda à Austrália. A leitura da inscrição que descreve o novo território não indicia que o autor se estivesse a referir ao continente australiano, mas admite-se que fosse uma tentativa fantasiosa de Manuel Godinho de Erédia para fazer o vice-rei em Goa interessar-se pela exploração da descoberta.



Portugueses e Holandeses na Indonésia

A ausência de prova documental inequívoca da chegada dos portugueses à Austrália não impede que seja geralmente aceite que os portugueses desembarcaram na costa australiana, ainda que nunca tivessem conhecido a real dimensão do novo território.

Os portugueses foram os primeiros europeus a navegar no Índico, e foram também os primeiros a chegar por mar à Índia, China e ilhas do arquipélago da Indonésia.

A presença portuguesa na Indonésia não se limitou às ilhas ocidentais, aquelas que produziam especiarias; incluiu também as ilhas mais remotas, a oriente. O primeiro registo da chegada dos portugueses a Timor é de 1512, e a chegada à Nova Guiné está registada 14 anos depois, podendo ter existido ter existido algum desembarque anterior à data dos registos conhecidos.

A Nova Guiné situa-se poucas milhas a norte da Austrália, sendo impossível não admitir que, na busca de oportunidades comerciais e conhecimento geográfico, algum capitão ou aventureiro português tenha avistado e desembarcado na costa norte ou oriental da Austrália.

No final do século 16, os holandeses chegaram ao Índico e foram os principais adversários dos portugueses, sobretudo nas ilhas indonésias. A pressão holandesa coincidiu com o período da união ibérica, quando a defesa do oriente português não era uma prioridade. Os holandeses tomaram a maioria das fortificações portuguesas e expulsaram os representantes da coroa das feitorias que tinham instalado. Na Indonésia, a presença portuguesa ficou reduzida ao lado oriental da ilha de Timor.

Quanto à Austrália, considerando o desembarque holandês em 1606 e o provável conhecimento português do contorno da costa norte australiana (a Nuca Antara de 1601 ?), nem portugueses nem holandeses se interessaram por um local inóspito, sem madeiras exóticas nem especiarias, nem nativos portadores de objetos que indiciassem a existência de metais preciosos. Além disso, a Austrália ficava fora das rotas comerciais entre as ilhas da indonésia, a Índia, a China e a Europa.



A Questão dos Registos Históricos

As navegações holandesas no oriente ficaram registadas com grande detalhe porque a navegação estava concessionada à Companhia das Índias Orientais holandesa; tal como acontecia com a congénere atlântica (a Companhia das Índias Ocidentais), os capitães estavam obrigados a prestar contas aos financiadores e proprietários da Companhia. Assim, procedia-se à anotação detalhada nos diários de bordo das viagens efetuadas e das despesas incorridas, quaisquer que fossem as circunstancias, sendo esses registos entregues e guardados na sede da Companhia, na Holanda.

No caso português tudo era menos metódico. A busca de oportunidades comerciais estava a cargo dos mandatários da coroa, coordenados a partir de Goa, ou era feita pela livre iniciativa de aventureiros. Muitas vezes contava-se com a colaboração de pilotos nativos, podendo até os portugueses seguir a bordo de embarcações locais. Neste sistema algo improvisado, compreende-se que seja menor o número de registos de desembarque em locais sem interesse económico.

Há outras razões que explicam a escassez documental portuguesa.
O terramoto de 1755 fez cair a Torre do Tombo original (uma das torres do Castelo de São Jorge, em Lisboa), tendo-se perdido um acervo indeterminado de documentos históricos aí arquivados.
Por outro lado, por ocasião das invasões napoleónicas, franceses e ingleses pilharam em Portugal muitos objetos de arte e livros antigos, o que incluiu mapas e registos ultramarinos; não por acaso o referido mapa de Godinho de Erédia, do inicio do século 17, foi reencontrado no Museu Britânico no século 19. Existem outros exemplos de cartografia portuguesa da época dos descobrimentos atualmente depositados em museus franceses e ingleses.



Os britânicos na Austrália

Em 1760 James Cook chegou à Austrália. Em Inglaterra considerou-se durante muitos que ele foi o primeiro europeu a chegar ao ultimo continente, omitindo-se, por desconhecimento ou não, que os holandeses tinham estado na mesma zona cerca de 150 anos antes.

Escassos anos depois da "descoberta" de Cook, os britânicos usaram a grande ilha inóspita nos confins do mundo como lugar de degredo de criminosos condenados na Grã Bretanha. A meio do século 19 foi descoberto ouro, e seguiu-se a gold rush. A colónia penal acabou e os filões de ouro esgotaram-se, mas ficou a Austrália, estado e nação, um dos melhores frutos que a politica e a cultura britânicas deram ao mundo.

***

(*) "Os Portugueses Descobriram a Austrália?", de Paulo Jorge Sousa Pinto.
O livro aborda 100 "factos, dúvidas e curiosidades dos descobrimentos".
São desfeitos alguns mitos, e em contraponto são apresentados acontecimentos que mostram que a expansão portuguesa superou o que é geralmente conhecido e divulgado.

Nenhum comentário: